O Apocalipse do Roque – dimensão cultural e angolocentrica da Instituição

- Joana, nem mais um minuto, levanta-te desta cama porque está na hora. Estou pronta para sair, mas vens comigo. Era este o ritual de todos os sábados da casa da família Silva. A mãe acordava a filha para irem às compras no Roque. Mas não era este o seu maior propósito. O que dona Fernanda fazia com esta tradição era enraizar na filha a realidade social e económica do País. Na verdade não era sempre assim, porque apesar de viverem abastadamente numa vivenda da 28 de Maio, na Maianga, e de Margarida estudar em Portugal, aquele contacto era vital. Sem retirar o status, trazia outros valores. Foi assim pelo menos durante uma década.

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«Tic, tic, tic» - São 05:00 horas da manhã. É madrugada ainda e mal a aurora de abriu. Na Rádio Luanda ouve-se o indicativo de Balumuka. Muitos dos habituais inquilinos diários do Roque Santeiro despertam para mais uma jornada. Muitos vivem ali perto, todavia a maioria precisa de candongueiros para lá chegar. Tal como nas repartições oficiais, é às 08:00 horas que começa o grande movimento. Antes, entre o matabicho, o arrumar das bancadas e a compra de novas mercadorias lá vão chegando o trabalhadores desta empresa. Como é que? Empresa? – Isso mesmo.

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Eleutério Sanches fez uma linda serenata a Luanda onde a dado momento considera a cidade “Luanda linda flor tropical/ (...) de beleza e encanto”. E ouvindo a descrição poética de Eleutério viajamos claramente pelos banhistas da Ilha de Luanda, entramos pela marginal e damos de frente com o inevitável edificio do BNA, falamos de bairros tradicionais como o BO e o Marçal, antes estivemos no Kinanxixi e a nossa imaginação acrescenta dois novos pontos: o Mussulo e o Roque – fórumula simplificada de Mercado do Roque Santeiro.

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O que torna afinal o Roque nesta instituição fulcral para a Luanda do pós 1987? Há uma dicotomia de boas e más razões. A sua localização entre a nobreza de uma das mais lindas vistas panorâmicas da Baia de Luanda a partir de uma encosta e o tradicional bairro do Sambizanga. Por outro lado há ainda o caos que o Roque é. Um verdadeiro antro de desorganização, de bagunça, do desenrancanço como escreve um escritor cá da praça. Mas há um aspecto mais importante e notável: Inspira os criadores cá dentro e lá fora, ao mesmo tempo que adquiriu já uma dimensão humanística notóriamente invejável. No meio daquele caos, haverá sempre alguém com quem poderemos conversar. Teremos sempre um cicerone, incrível isso. Há sempre uma história para contar, para guardar, para ouvir. É assim no Roque.

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Se o livro de Carlos Lopes «Roque Santeiro - Entre a Ficção e a Realidade» traz-nos uma perspectiva bastante económica associando o Roque ao mercado informal angolano e o seu peso na economia do País, há outras obras, porventura bastante interessantes no quadrante artístico e ficcional. «Chove na Grande Quitanda» de Jacques dos Santos é uma delas, uma premissa do que há pouco focamos. Mas há que trazer a luz o romance de Hendrick Vaal Neto sobre o Roque trazendo-nos um paralelismo romântico e filosófico sobre os mercados formais e informais com personagens recriados na sua pena. “Alguém levantou a questão de saber se o Roque era ou não um cancro no seio da cidade de Luanda. Falava-se dele como que se tratasse dum mundo totalmente diferente do resto da capital, um covil de delinquência, um antro de imoralidade e de miséria que nos assustasse e ameaçasse como coisa nova. Ora o que acontece no Roque, passa-se no centro das cidades do mundo inteiro, em proporções maiores e mais frequentes de dia e de noite, nos maciços dos arranha – céus arrefecidos pelo ar condicionado, nas ruas largas e estreitas”, explicou.

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Mas este valor do Roque não se reduz a literatura, tem nela um expoente axial, mas encontra noutras vertentes artísticas como a música e a pintura grande expressão também. No caso da música por exemplo, é curioso notar que ao contrário do que seria de esperar não é lá o local onde se alimentam várias bandas do cancioneiro popular – e é só vermos que ManRé surgiu nos Trapalhões e não aqui – e não há memória de músicos saídos daqui com sucesso. Mas tem um valor notável na música, na sua divulgação. Grande parte dos músicos menos conhecidos – e até alguns famosos embora rejeitem publicamente isso – colocam estas músicas nos DJs daquele espaço para então as reprodudizirem em CDs que são depois comercializados em toda a cidade. É assim principalmente com os músicos de kuduro. Já em relação às artes plásticas, há notícias de um artista português Ferreira Pinto ter recriado o mercado numa tela, para além do projecto Urban Choices II de António Ole.


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Internacionalmente conhecido, nacionalmente preocupante, o Roque vive agora uma das suas fases mais duras, pois “como mercado, está condenado”, profetizou Pepetela. Não sem razão, há alguns anos que se fala na sua transferência para o Panguila, uma necessidade vital ou uma falidade urbanística, mas cujo impacto político, social e económico precisa ser devidamente acautelado, sob todos os pontos de vista.

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