4 de Fevereiro de 1961 - "Catanas" que anunciam a queda do império colonial português em Angola (*)



4 DE FEVEREIRO DE 1961




ANTECENTES OU O CONTEXTO SOCIAL

Penso que as datas são importantes quando falamos de grandes feitos históricos, sobretudo para os jovens, como pretendemos fazê-lo hoje. Muito obrigado pela vossa atenção e interesse.

Depois da chegada dos portugueses e dos primeiros contactos com os nativos do Reino do Kongo e mais tarde do Ndongo, a penetração para o interior faz-se de modo lento e progressivo. No entanto, é a Conferência de Berlim (1884, onde a divisão de África entre as diferentes potências coloniais foi decidida e a partir da qual a ocupação territorial das respectivas zonas de influência tornou-se obrigatória, ignorando-se questões étnico-culturais,) que precipita a ocupação e colonização efectiva de Angola.


Este processo, consolida-se com a instauração do fascismo e do Estado Novo, em Portugal, em 1926 e inverte a tendência social e económica da metrópole. É também um período de grande agitação internacional em que assistimos as duas guerras mundiais [1914-1918 e 1939-1945]com impacto extraordinário na geopolítica internacional. No fundo, ninguém escapa, nem mesmo os africanos que vêem-se obrigados a participar ao lado das potências colonizadoras. Joseph Ki Zerbo fala dos “senegalês” ou ainda de como os ingleses colocaram estrategicamente os soldados africanos em frentes de combate fora do território europeu para evitar que estes tivessem uma percepção sobre as fragilidades do “homem branco”. É esta participação que se torna vital no sentido de aumentar a consciencialização dos africanos em relação às suas capacidades e a necessidade de independência. E, não tarda, assistimos as independências na maioria dos países da África do Magreb e Ocidental e Asiáticos (Índia em 1947 e a China em 1949). As potências coloniais não só encontravam-se fragilizadas como sofriam uma grande pressão dos EUA e URSS para que permitissem aos povos colonizados ascenderem às suas independências.

Sorte diferente têm os países colonizados por Portugal que  sem participar nela directamente, graças a habilidade do seu ministro das Finanças, Oliveira Salazar, sai da segunda guerra mundial com uma situação financeira invejável, com os cofres públicos a abarrotar de divisas e de ouro, apesar do seu atraso cultural, científico e tecnológico. A economia manufactureira começa a crescer e tem como Mercado principal os territórios ultramarinos. Este crescimento torna-se mais apetecível após a exploração de alguns minérios (diamantes, petróleo e ferro) e o desenvolvimento da agricultura, principalmente de culturas como o café, cacau, algodão. [Destes dois parágrafos aproveitaria a participação dos africanos em ambas as guerras mundiais para acrescentá-la aos factores de conscientização explicando de que maneira é que o fenómeno opera]

A administração colonial endurece o carácter do trabalho forçado, mas para fazer face às pressões internacionais que exigem independências, procede [a] algumas mudanças cosméticas como a mudança da designação e estatuto destes  que passam a chamar-se de Provincias Ultramarinas, na sequência de uma revisão constitucional que previa Portugal do Minho à Timor. O Estado colonial começa assim a introduzir negros e mestiços (os chamados Assimilados dentro do estatuto do indigenato proclamado em 1954) na administração. Em contraposição, encontrávamos a maioria dos nativos que vive numa situação social precária, tendo de realizar trabalhos forçados, muitas vezes fora das suas zonas de origem – muitos foram assim enviados para São Tomé e Príncipe ou outros que são forçados a sair do norte para o sul de Angola e vice-versa – na condição de contratados, raramente instruídos, ou como quem diz, analfabetos.

O lançamento de grandes obras de infraestruturas como portos, estradas e caminhos de ferro, a exploração de alguns minérios, o desenvolvimento da pesca, a chegada massiva de novos colonos e companhias agrícolas tornam necessário o aumento da mão de obra intensiva, compensando assim as insuficiências tecnológicas da economia portuguesa. É neste contexto que se procede a adopção da figura dos contratados. Quer a administração quer as empresas privadas estão com uma grande demanda. Cipaios, chefes de posto, sobas e regedores são os grandes angariadores. Ali onde houvesse dificuldades, havia rusgas. No dizer de Galvão Branco, ninguém poderia escapar e quem assim procedesse era obrigado ao trabalho forçado e gratuito nas obras do Estado ou trabalhos penais. Aqueles que desaparecessem, os seus familiares directos, inclusive mulheres e filhos menores, incorriam em pena de prisão.

Por isso, um espelho perfeito desta situação é retratada no poema de António Jacinto, Carta de um contratado. Lírico, mas muito contundente na denúncia que faz a condição analfabeta do povo.

"Eu queria escrever-te uma carta
amor
uma carta que dissesse
deste anseio
de te ver
deste receio de te perder
deste mais que bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue...
Eu queria escrever-te uma cara 

amor

uma carta de confidências íntimas 

uma carta de lembranças de ti

de ti 

dos teus lábios vermelhos como tacula

dos teus cabelos negros como dilôa 

dos teus olhos doces como macongue 

dos teus seios duros como maboque 

do teu andar de onça 

e dos teus carinhos 

que maiores não encontrei por aí... 

Eu queria escrever-te uma carta 

amor 

que recordasse nossos dias na capôpa 

nossas noites perdidas no capim 

que recordasse a sombra que nos caía dos jambos 

o luar que se coava das palmeiras sem fim 

que recordasse a loucura 

da nossa paixão
e a amargura nossa separação...

Eu queria escrever-te uma carta
amor

que a não lesses sem suspirar
que a escondesses de papai Bombo

que a sonegasses a mamãe Kieza
que a relesses sem a frieza
do esquecimento
uma carta que em todo Kilombo
outra a ela não tivesse merecimento...
Eu queria escrever-te uma carta
amor
uma carta que te levasse o vento que passa
uma carta que os cajus e cafeeiros
que as hienas e palancas 

que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho 

os bichos e plantas
compadecidos de nosso pungente sofrer 

de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar

te levasse puras e quentes

as palavras ardentes 

as palavras magoadas da minha carta 

que eu queria escrever-te amor... 

Eu queria escrever-te uma carta...
Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem

que tu não sabes ler

e eu - Oh! Desespero - não sei escrever também!"
António Jacinto

Agostinho Neto retoma esta temática quando nos diz que
ADEUS À HORA DA LARGADA
Minha mãe
(todas as mãe negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis

Mas a vida
matou em mim essa mística esperança

Eu já não espero
sou aquele por quem se espera

Sou eu minha Mãe
a esperança somos nós 
os teus filhos
partidos  para uma fé que alimenta a vida

Hoje

somos as crianças nuas das sanzalas do mato

os garotos sem escola a jogar a bola de trapos

nos areias ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes

que devem respeitar o homem branco

e temer o rico

somos os teus filhos

dos bairros de pretos

além aonde não chega a luz eléctrica

os homens bêbedos a cair 

abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos

com fome

com sede
com
vergonha de te chamarmos Mãe

com medo de atravessar as ruas 

com medo dos homens
nós mesmos

Amanha

entoaremos hinos à liberdade

quando comemorarmos

a data da abolição desta escravatura

Nós vamos em busca de luz

os teus filhos Mãe

(todas as mães negras
cujos filhos partiram)

vão em busca de vida.

Esta situação foi alimentando junto das populações africanas um permanente sentimento de injustiça, insegurança, medo e revolta. E promove assim, inicialmente entre os povos limítrofes, desde meados dos anos 50, a fuga massiva para os países vizinhos, nomeadamente para Katanga e Léopoldeville-Kinshasa (Congo Belga-RDC), Sudoeste Africano (Namibia) e Rodésia do Norte (Zâmbia).

Aumenta o nível de consciência dos povos africanos sobre a necessidade de independência. Os ventos que sopram em outras partes do continente proclamam a independência do Ghana e Quénia, da Costa do Marfim, dando assim lugar aos ideais do panafricanismo e da solidariedade com os outros povos que ainda sofrem o jugo do poder colonial.

É assim que ao longo dos anos 50 desenvolve-se no seio da juventude, a maioria desta, com maior formação cultural e intelectual, porque têm já acesso aos liceus, uma maior consciência política sobre a situação. Inicialmente em associações cívicas de afirmação cultural e contestação política (Liga Nacional Africana, ANANGOLA, Casa dos Estudantes do Império, Clube Marítimo Africano, Botafogo, UPNA) que nos finais dos anos 50 evoluem para verdadeiros movimentos políticos que actuam principalmente a partir da clandestinidade. Nascem algumas células no interior dos principais musseques em Luanda, Uige, Zaire, Malange, Benguela e Lobito com as famílias já mais esclarecidas a influenciarem as outras. A PIDE intensifica as suas acções no sentido de se opor ao seu trabalho e alguns destes jovens são condenados, passando a ser conhecidos como presos políticos.

Um outro evento relevante para percebermos o quanto o governo colonial pretendia máscara a situação que se vivia foi a criação, em 1960, do Centro de Informação e Turismo de Angola (CITA) com um objectivo inicialmente muito ligado à publicidade dos Serviços da Economia. Logo após aos eventos de 1961 [Janeiro, Fevereiro e Março] o CITA foi reestruturado por meio de um decreto do Ministro do Ultramar, que estabelece como atribuições “de um modo geral, reunir, estudar e difundir as informações que interessam à política, à administração e à defesa das referidas províncias”[1].   

UMA GESTA HERÓICA

Na madrugada do dia 4 de Fevereiro de 1961, grupos de nacionalistas angolanos, comandados por Neves Bendinha, Paiva Domingos da Silva, Domingos Manuel Mateus e Imperial Santana, num total de cerca de duzentos homens, armados com catanas, desencadearam uma série de ações de revolta na cidade de Luanda.

Um desses grupos montou uma emboscada a uma patrulha da Polícia Militar, neutralizando os quatro soldados, tomando-lhes as armas e as munições. Com o objectivo de libertar os presos políticos[2], assaltaram a Casa da Reclusão Militar.
Outros alvos foram a cadeia da PIDE, no Bairro de São Paulo e a cadeia da 7ª Esquadra da PSP, onde havia também presos políticos. Tentaram igualmente ocupar a «Emissora Oficial de Angola», estação de rádio ao serviço da propaganda do Estado.

Nestas ações, morreram quarenta guerrilheiros, seis agentes da polícia e um cabo do Exército Português, junto da Casa da Reclusão.



O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), considera o 4 de Fevereiro como data do início da luta armada em Angola. No entanto, na origem desta rebelião esteve o cónego Manuel Joaquim Mendes das Neves (1896-1966), mestiço, natural da vila do Golungo-Alto, missionário secular da arquidiocese de Luanda, o qual estava ligado aos nacionalistas presos e outros dos bairros que engendraram a ação.

A ação inseriu-se nos anseios da população e na necessidade de se passar a formas de luta que respondessem à rigidez da administração colonial. (...) Os participantes no ataque foram treinados sobre práticas, por exemplo como manejar os instrumentos que seriam utilizados, principalmente catanas, ou desarmar um sentinela, segundo relatos das testemunhas. 

Há um dado, também ele histórico, que diversas fontes apontam como importante para este desencadear da revolta naquela data, que foi a presença de vários jornalistas estrangeiros em Luanda. A imprensa internacional aguardava a chegada a Luanda do paquete Santa Maria, assaltado nas vésperas por Henrique Galvão num gesto contra o regime fascista de Oliveira Salazar. O Santa Maria não aportou em Luanda e os jornalistas estrangeiros preparavam-se para levantar âncora quando, no meio popular surgem alguns elementos a aproveitar a presença da imprensa internacional para dar destaque mundial a uma acção de revolta anticolonial. Assim terá nascido, há 54 anos, o 4 de Fevereiro de 1961 com o objectivo de dar a conhecer ao mundo a existência de um sentimento nacionalista e independentista em Angola.

A seguir, o então governador-geral de Angola, Silva Tavares, resolveu fazer uma incursão pelos musseques — ou «bairros excêntricos», como eram descritos pela imprensa em Lisboa — acompanhado pela polícia e por jornalistas previamente escolhidos. Silva Tavares pretendia assim demonstrar que a situação se encontrava calma. Logo a seguir à visita, o governador lia uma mensagem, na Emissora Nacional, garantindo que reinava a calma em Luanda e recomendando às pessoas para acatarem as ordens e recomendações da polícia, mascarando as buscas e matanças que alguns sectores da sociedade portuguesa fazia contra os autóctones.

REPERCURSSÕES HISTÓRICAS

a)    Fim do estatuto de indigena

O fim deste Estatuto data de 1961, ano em que Adriano Moreira, então ministro do Ultramar, o revoga. Com o fim do Estatuto, passa a ser possível aos angolanos "indígenas" terem cidadania portuguesa, sem qualquer tipo de discriminação; e a puderem ser integrados no sistema educacional nacional.
Um ano depois do fim do Estatuto do Indigenato, Adriano Moreira revoga o Código do Trabalho dos Indígenas, criado em 1956. Este Código estabelecia que o sistema de exploração económica iria ser sustentado pela mão-de-obra indígena, em geral com baixos salários. Com a revogação, os indígenas passam a não serem obrigados a trabalhar e a poderem livremente escolher para quem trabalhar. Passam a ter acesso à função pública, e termina a obrigatoriedade das culturas agrícolas específicas. É permitida, também, a criação de mercados rurais aos produtores angolanos.

b)    Intensificação da luta
Os sucessos do 4 de Fevereiro foram descritos como o resultado de uma exemplar acção, pensada e posta no terreno pelo MPLA (que alias reivindicou a sua autoria), e assim interpretados como inicio de uma longa e denotada luta armada levada a cabo contra o colonialismo português que se encontrava cada vez mais isolado. Aos acontecimentos de Fevereiro ter-se-ia seguido uma nova etapa do combate político-militar protagonizada pelo MPLA e outros movimentos, centrada nas matas de Angola.



Por isso, é inútil questionarmos a autoria[3] da acção bem assim como o seu impacto. Porquê? Porque o 4 de Fevereiro é um acontecimento politicamente racional – ou seja, feito com um propósito político – dirigidos contra o governo colonial português exigindo uma resposta que não foi prevista. Os nacionalistas angolanos esperavam iniciar as negociações e a parte portuguesa intensifica a luta. Aumenta o número de efectivos militares em todo o território angolano para fazer face às ações da guerrilha e a PIDE reforça a sua acção nos musseques e bairros populares onde circula a mensagem de luta, ao mesmo tempo que procuram melhorar as condições de vida das populações. As grandes cidades de Angola conhecem um boom de infraestruturas e a economia, principalmente a agricultura e as industrias extractiva e transformadora vivem uma grande agitação.

Há uma acção concertada com os outros movimentos de libertação dos países de expressão portuguesa, ao mesmo tempo que se intensificam os corredores diplomáticos no sentido de pressionarem Portugal a ceder a independência. Desta época, um grupo de nacionalistas evade-se de Portugal pela França, para a Argélia; Há uma frente em Conakry, Brazzaville e os primeiros treinos militares em Marrocos. A revolução [contestação?] cultural dos anos 50 dá lugar ao discurso político e começa a fase de luta verdadeiramente dita.

Foi, portanto, graças a este gesto heroico do 4 de Fevereiro que começou realmente a luta armada que conduziu à independência tendo em conta que Portugal, ao contrário das outras antigas potências coloniais que negociaram as independências, lutou até ao fim para preservar as suas e os nacionalistas tiveram que arrancá-las à força das armas...Lembrar aos jovens a dívida de gratidão que temos em relação a todos os que tiveram a coragem de enfrentar um inimigo em todos os sentidos superior e não hesitaram em dar a sua vida para que tenhamos hoje uma vida melhor, etc., etc. Portanto, tal como os heróis de Fevereiro, cada um de nós tem uma responsabilidade cívica e um dever patriótico de contribuir para a consolidação da democracia e a construção de uma sociedade justa e equitativa...


BIBLIOGRAFIA
AAVV, ANGOLA – O Nascimento de uma Nação, Vol II o Cinema da libertação, Guerra & Paz, Lisboa, 2013

ROCHA, Edmundo, ANGOLA – Génese do Nacionalismo Moderno Angolano, Kilombelombe, Luanda, 2003

MABEKO-TALI, Jean-Michel, O MPLA perante si próprio, Nzila, Luanda

LARA, Lúcio, O Amplo Movimento

SANTOS, Egidio de Sousa, O esboço da História Política Angolana






(*) Por Adebayo Vunge
[1] Para melhor compreender o papel da instituição de propaganda do regime colonial, ver mais em AAVV, ANGOLA – O Nascimento de uma Nação, Vol II o Cinema da libertação, Guerra & Paz, Lisboa, 2013
[2] Existem relatos que apontam a circulação de folhetos nos musseques de Luanda exigindo a libertação dos presos políticos que se encontravam detidos desde 1959 e sem julgamento ou culpa formada.
[3] Embora exista alguma discórdia em torno da autoria, não é difícil admitirmos e associarmos a sua acção ao MPLA pois naquele ano tratava-se já de um movimento organizado, com uma direcção no interior e um braço no exterior, cujo rastilho começou com o Manifesto de 10 de Dezembro escrito por Viriato da Cruz, tendo como sequências o Partido Comunista Angolano, MIA, MINA e a partir dos anos 1960, MPLA de facto. Sendo certo que o seu eixo operacional é localizado nos bairros periféricos de Luanda, ditos musseques, não nos é imprudente fazermos esta associação.

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